Diário De Um Farmacêutico No Apocalipse

Querido Diário,

Diário De Um Farmacêutico No Apocalipse

Hoje venho falar-te do meu dia na Farmácia. Os últimos dias não têm sido fáceis e preciso de te contar o que se tem passado. Vou tentar resumir ao máximo o meu dia de hoje.

8h45

Entrei na Farmácia. Depois de ligar os equipamentos todos e de desinfectar-me e aos equipamentos, é altura de enfrentar um novo dia e dar o meu melhor enquanto farmacêutico. As Farmácias não fecham caso haja quarentena obrigatória, então temos que tomar medidas para reduzir ao máximo a nossa exposição e risco.

9h00

Abro a porta de fora e tranco a porta interior da Farmácia, de forma ao atendimento ser apenas possível pelo postigo. Tenho avisos de que as pessoas devem distanciar-se pelo menos um metro entre eles e que apenas é atendida uma pessoa de cada vez.

9h05

Entra a primeira pessoa: uma senhora de 80 anos. Terceiro dia seguido que vai à Farmácia comprar uma caixa da sua medicação habitual. Depois de já lhe ter dito, nas vezes anteriores, para fazer uma lista do que precisa e de que necessita de ficar em casa, diz-me que já viu muita coisa e que é apenas uma "gripezinha". Volto a reforçar as medidas que deve tomar e que deve ficar de quarentena - amanhã voltará à Farmácia, certamente.

9h10

A segunda utente empurra a porta interior e questiona porque é que, para ela, eu tenho que a atender pelo postigo. Informo novamente das medidas de contingência que a Farmácia tomou - a porta interior não vai ser aberta e os atendimentos irão continuar a ser efectuados pelo postigo.

9h15

Vejo as pessoas na fila "coladas" umas às outras. Informo-as novamente de que devem respeitar e manter a distância de segurança. A Dona Xis ouve mal, empurra toda a gente para se chegar perto do postigo (ficando "colada" a todas as outras pessoas). Repito o que disse. A Dona Xis reclama. Diz que não entende este "exagero".

9h30

A fila fica cada vez maior, mas a maior parte das pessoas compreende. Entretanto, tenho o meu colega que, desde as 9 horas se encontra a atender chamadas e a separar os medicamentos para as reservas que nos vão chegando, de forma a reduzir o tempo de atendimento.

10h

Começo a ficar com vontade ir ao WC. Raios! Não devia ter tomado o diurético. Peço para trocar com o meu colega. Descalço as luvas. Lavo as mãos. Desinfecto as mãos e trato do assunto.

10h10

Volto a proceder à lavagem das mãos, bem como à desinfecção. Calço as luvas e começo a ouvir barulho. Espreito e vejo duas pessoas (o Senhor Ésse e a Dona Éme) a discutirem porque a Dona Éme "furou" a fila e quer ser atendida primeiro. O Senhor Ésse ameaça dar-lhe uma chapada na cara para ver se a Dona Éme aprende a respeitar a fila.

NOTA: tal como alguém uma vez comentou, nos dias de hoje, alguém ameaçar contacto físico tem de ser temido. Esse alguém é perigoso.

Note to myself: evitar aproximar-me do Senhor Ésse!

10h15

Vou à porta e, mesmo com ela fechada, exijo ordem na fila! Penso seriamente em ameaçar borrifar a cara de cada um deles com o desinfectante. Eles acalmam e cada um vai para o seu lugar na fila.

11h

Chegam os motoristas que vêm entregar as minhas encomendas. Tenho que abrir a porta. Os motoristas deixam as encomendas à porta da Farmácia e ouço pessoas a questionar porque é que para eles abro a porta e para os utentes não

Penso novamente em borrifar a cara dos utentes que me questionam isso para ver se eles percebem. Calmamente, explico que há excepções e as encomendas são uma delas. Desinfecto as "banheiras" antes delas entrarem na Farmácia, bem como o chão onde as pousei. Volto a trancar a porta.

12h

Apercebo-me que até agora, a maioria dos utentes que atendi tem mais de 70 anos e não se encontram preocupados com o COVID-19. Informo-os e alerto-os de que devem ficar em casa e não sair para coisas desnecessárias, mas a resposta que obtenho é "Novamente essa conversa, xôtor?"

13h

Já almocei. O meu nariz já não sente o cheiro a desinfectante que paira na Farmácia. O meu colega de trabalho também não se queixa desse cheiro que já nos deixa inebriados. Continuamos com o nosso trabalho.

15h

A fila ainda não desapareceu. Ainda não paramos de atender. Não houve um momento em que tivemos parados sem pessoas para atender. O telefone não pára de tocar. Considero contratar um escravo para me atender o telefone e tratar das reservas.

16h

A minha orelha "arde" com tantas chamadas. Volto a ouvir novamente barulho à porta. Oh bolas! Novamente o Senhor Ésse a ameaçar um outro senhor com contacto físico.

Note to myself: oferecer uma garrafa de água com um soporífero dissolvido para ver se ele se acalma e pára com as ameaças. Afinal, ele é um perigo. No mesmo dia, duas ameaças de contacto físico? Hum...

16h30

Chegam as encomendas da tarde, Voltam as pessoas a questionar porque é que eu abro a porta para eles e para elas não. Volto a esclarecer. Fico com uma sensação de dejá-vu. Acho que já vivi este "cenário" algumas vezes.

17h

O telefone continua a tocar. São as duas linhas a tocar ao mesmo tempo. Tenho 23 e-mails pendentes de resposta que precisam de ser respondidos durante o dia de hoje. Estou tramado!

Note to myself: contratar escravos para me responder aos e-mails.

17h30

Tentativa de beber um iogurte para não cair para o lado de fraqueza. Sinto o meu estômago a tocar as sinfonias de Beethoven em ruídos. Sinto o meu estômago a dar-me murros e a gritar "Dá-me comida, seu desnaturado!". Peço para ele ter calma.

17h45

Volto a ouvir burburinho. Penso que é desta que vou borrifar a cara do Senhor Ésse, mas não. Foi alguém que espirrou sem colocar a dobra interior do cotovelo à frente e gerou o pânico!!

Vejo pessoas a correrem desalmadamente para o outro lado da rua, a pegarem nos frascos de álcool-gel e besuntarem as mãos com o mesmo. Ouço as mesmas pessoas a insultarem a pessoa que espirrou. "Dou na cabeça" a essa pessoa e informo que não pode fazer isso! Para o bem dele e de todos.

Peço às pessoas para se afastarem da porta enquanto vou desinfectar o postigo e os vidros todos onde podem estar as gotículas espirradas. A vida é um risco.

18h

Termino a limpeza. Volta tudo à normalidade, dentro do possível. Avisto o Senhor Ésse na rua. Fico com medo que volte a ameaçar mais alguém. Afasta-se. Respiro de alívio.

18h30

Finalmente, uns minutos sem pessoas para atender. Faço um balanço dos atendimentos até agora e vejo que grande parte das pessoas veio comprar coisas que não são estritamente necessárias. Vejo também que grande parte das pessoas atendidas pertencem a grupos de risco - idosos. Concluo também que os pais com crianças andam a passear pela rua em vez de estarem em casa a protegerem-se.

18h45

Volto novamente ao activo e vejo uma fila interminável. As pessoas reclamam do frio e do vento. Questionam se vão demorar muito a ser atendidas. Peço calma e um pouco de compreensão.

Pelo canto do olho, vejo novamente o Senhor Ésse a rondar a fila de pessoas. Será que vai ameaçar mais alguém?

Note to myself: contratar um escravo para vigiar o Senhor Ésse.

19h

Sozinho na Farmácia. Sinto as pernas cansadas. Sinto-me cansado. Penso em beber um café. Bolas!!! Estou com o Invisalign. Para beber o café tenho de tirar o elásticos, tirar os alinhadores, beber o café, escovar os dentes, escovar os alinhadores, voltar a colocar o elástico, Estou sozinho. Desisto da ideia de beber café. Iria perder bastante tempo.

19h15

Nova enchente de pessoas. Novamente pessoas a comprarem algumas coisas que não são essenciais (na minha opinião). Penso que já só faltam apenas 15 minutos para fechar.

19h30

Afinal não vou fechar a esta hora. Tenho uma fila de cinco pessoas ainda para atender.

20h

Finalmente, fecho a Farmácia. Fecho as contas. Desinfecto novamente as superfícies. O meu nariz já não sente qualquer cheiro, pois está "anestesiado". Lavo as mãos, desinfecto-as. Visto o casaco, activo o alarme e fecho a Farmácia. Amanhã será um novo dia.

Têm sido dias bastante cansativos, Diário. Amanhã será um novo dia!

PS - eu tenho plena consciência da gravidade desta situação. Este texto é apenas um pequeno resumo dos meus dias. Alguns pormenores (nomeadamente o Senhor Ésse) são fictícios para tentar aligeirar as coisas. No entanto, posso dizer-vos que, efectivamente, tive uma pessoa a ameaçar uma outra porque esta última passou à frente de toda a gente na fila. Contudo, espero que tenham gostado deste "Diário".

A todos os meus colegas Farmacêuticos e demais profissionais de saúde, FORÇA. E obrigado! Estamos juntos nesta batalha! Que daqui a algum tempo, estejamos todos juntos e a rir deste Diário!

4 comentários:

  1. A falta de consciência por parte de alguns seres humano faz-me uma comichão tremenda :(

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    1. A mim também me deixa preocupado. Mais ainda quando não há respeito nem consideração pelo nosso trabalho.

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